_ online
_ papers
_ books
_ conferences
_ press
_ other


As lições de Obama para a educação
Paulo Blikstein

published on Nov 2008

Imagine criar um sistema educacional que gere um exército de pessoas inconformadas, querendo mudar o mundo, querendo melhorar de vida, querendo ajudar o país

 

O taxista parou o carro e disse com ar paternal: se ele ganhar, os negros vão quebrar tudo, tome cuidado, vai ter baderna. Discordei, discuti, não dei gorjeta, e saí batendo a porta. Olhei em volta e a imagem no Grant Park, em Chicago, era de arrepiar: uma multidão sem tamanho tomava conta do centro da cidade. Dessa vez, contrariamente ao costume americano, sem enormes geladeiras de isopor, churrasqueiras portáteis, cadeiras dobráveis ou tendas de três cômodos. A multidão tinha apenas uma arma: câmeras digitais, milhares delas, registrando, além da eleição, o sonho de um país sem segregação. Um jovem negro segurava um cartaz com a foto de Barack Obama e a palavra “victory” (vitória). Montado sobre de um enorme bloco de concreto, posava sorrindo para dezenas de fotos, instantaneamente transformado de observador em protagonista no mundo. Quase como em um poema-foto de José Paulo Paes, um sinal de trânsito aberto logo atrás do rapaz formava um quadro perfeito.

O tamanho do sorriso daquele rapaz e seu recente status de celebridade me fizeram entender o maior papel de Barack Obama e sua vitória histórica. Claro, não sejamos ingênuos, qualquer político moderno é uma cuidadosa criação mediática, gerada por marqueteiros alimentados por pesquisas de todo tipo. Ironicamente, o excesso de informação sobre os eleitores gera líderes que são prisioneiros de sua audiência. Hoje, o que Obama representa são as utopias que queremos que ele represente. E, nesse processo, vendo validados nossos desejos e utopias tão bem representados por um líder (e Obama, não por acaso, é um grande orador), pensamos: “quem sabe, afinal de contas, eu posso desejar aquilo?” E nesse círculo virtuoso acontece a mágica: uma nova geração de repente passa a acreditar que existe historicamente, que pode fazer a diferença, que tem um propósito, e trabalha em dobro para fazer disso realidade. O “Yes, We Can” (“Sim, nós podemos”), lema da campanha de Obama, é a mais precisa expressão desse processo.

Mas como a educação entra nisso tudo? Se eu colocar a palavra “sonho”, “utopia” e “educação” na mesma frase, o leitor logo vai dizer: “lá vem mais um educador com aquela conversa fiada”. Escola é coisa séria, sonho não enche barriga, utopia não faz subir a bolsa. A gente precisa é de “mão de obra”. Ledo engano. Barack Obama está mostrando que o que vai tirar os EUA da pior crise econômica desde a crise de 1929 é exatamente o sonho, a utopia, a inventividade, a criatividade, e a auto-estima recobrada de um povo. Um povo que vê propósito na sua existência trabalha mais, produz mais, inventa mais.

Ora, mas as palavras “sonho”, “utopia”, “inventividade” e “auto-estima” soam familiares, não? Educadores como Freire, Dewey e Papert (e tantos outros) passaram a vida toda defendendo uma escola que gerasse gente com essas exatas características, e condenando a educação opressiva, massificada e industrial. Eles defendem um sistema educacional que produza alunos criativos, livres para aprofundar seus talentos, incentivados a pensar por conta própria e obcecados em melhorar o mundo. Parafraseando Obama, é como se Papert e Freire dissessem: “Sim, os alunos podem”. Mas muita gente não leva isso a sério: diz que essa história de valorizar o aluno é impossível, cara, ou simplesmente errada. E daí muitas dessas mesmas pessoas saem por aí dizendo que estamos na sociedade do conhecimento e que a inovação é a única forma de avançar. Mas, para inovar, não é necessário formar inovadores?

Mas não se cria inovadores sem auto-estima. Diversas pesquisas em psicologia mostram que a nossa percepção de auto-eficácia tem uma forte correlação estatística com nosso sucesso em uma determinada tarefa – às vezes maior ainda do que a nossa habilidade real. Em um experimento famoso, várias mulheres asiáticas foram convidadas completar uma prova de matemática. Metade recebeu um material de apoio que insinuava que mulheres asiáticas são ruins de matemática. Todas tinham exatamente a mesma habilidade matemática, mas o grupo que recebeu o material negativo teve uma pontuação muito inferior. Em outras palavras, a crença em nosso potencial e talento gera um círculo virtuoso de melhora.

Aquele jovem negro que segurava o cartaz de Obama em Chicago talvez agora sonhe mais alto: quem sabe abrir um negócio, ou virar advogado? Afinal de contas, “Yes, we can”. E quantos jovens negros nos EUA não estão sonhando em virar presidente?

Imagine criar um sistema educacional que gere um exército de pessoas assim, inconformadas, querendo mudar o mundo, querendo melhorar de vida, querendo ajudar o país – e, principalmente, com o conhecimento para fazer isso acontecer? E aí temos o ponto fundamental: a mágica acontece quando colocamos o espírito de mudança e o conhecimento acadêmico lado a lado. Gerar o desejo de mudança sem ensinar as ferramentas da mudança é inócuo, ou irresponsável.

Claro, isso será caro, longo e difícil. Mas com um sistema educacional especialmente competente em fazer os alunos sentirem-se incompetentes, isso não vai acontecer. Talvez tenhamos que reduzir o número de alunos por sala de aula, quebrar paradigmas, investir em tecnologia, treinar professores, melhores instalações, mudar o conceito de currículo. Talvez leve décadas. Mas eu não consigo pensar em nenhum investimento com maior taxa de retorno para uma nação.

Ontem, no Grant Park, não era só o motorista de taxi com seu discurso racista que estava errado (não houve sequer um incidente de violência). Estava errado também quem previu, e quem acreditou, no fim da História. Haverá História enquanto houver uma geração com senso de propósito e seus sonhos mais ou menos impossíveis. Haverá História enquanto houver um jovem em cima de um bloco de concreto em algum canto do mundo, pensando que não há limites. E faremos História se criamos a escola onde ele gostaria de estudar. Yes, we can.

Paulo Blikstein é professor na Escola de Educação da Stanford University, EUA




home | projects | courses | contact | webmaster

Copyright © 2003
Designed by Tatiana Chapira